sábado, 30 de janeiro de 2010

O Guia Espiritual do Linux & Seus Amigos

Introdução
Este é o Guia Espiritual do Linux & seus Amigos. Mas não é um guia qualquer. Suas diferenças residem em diversos pontos. Primeiro, ele é aleatório: aparentemente, seus tópicos não estão conectados, mas se você tiver presença de espírito para compreendê-lo como um todo, sentirá sua harmonia. Segundo, ele não é premeditado. Foi escrito pela inspiração de Tux e Seus Santos Cavaleiros, Vim e Fluxbox. Terceiro, é um dos poucos guias espirituais que tratam sobre assuntos que, de outra maneira, seriam tratados como técnicos. Finalmente, e mais importante, ele é elitista. Apresenta uma visão conservadora e representa uma classe única de usuários e crenças sobre a vida.

Lembro que o nome original deste Guia para em Linux, mas acrescentei a parte final de modo a expandir o motivo do Guia. O nome do Linux está em destaque não em detrimento de outros honoráveis projetos, mas simplesmente porque assim como Bom Bril é sinônimo de esponja de aço, Linux é sinônimo de software livre.

Colocando as cartas na mesa logo de cara, o Guia pretende se fazer sincero. Pode ser unilateral e parcial, mas nunca tentará enganar você. Os dogmas apresentados abaixo devem fazer sentido para você, ou então você pode descartá-los. Um Guia egoísta, porque “querer o meu não é roubar o seu”.

Dogma Um: Usuários de Linux Fazem Parte de uma Elite

Embora seja correto dizer que o Linux é de todos, é incorreto imaginar que ele seja para todos. Existem muitos fatores que definem quem pode ser e quem não pode ser um usuário de Linux. Entre eles, estão inteligência, mente aberta, vontade de explorar, saber onde achar informações, conseguir se virar etc. Existem outros fatores sociais, também, mas deixo isso para o leitor pensar.

O computador é uma ferramenta poderosa. Criar um sistema operacional que seja fácil para o completamente leigo significa que ele deixará de ser poderoso. Por exemplo, Google Chrome OS. Um sistema operacional mínimo, com as limitações óbvias da Internet. Ou o Windows, cujo nível de personalização e configuração é domado pela GUI. É um erro imaginar que o Ubuntu seja um sistema utilizável por um leigo. Não estou falando de trabalhos triviais: um dia o usuário terá de executar manutenção, e ele precisa saber o que está fazendo ou, pelo menos, saber onde procurar ajuda.

E quanto mais poderosa uma ferramenta, maior a responsabilidade e a demanda de conhecimento.

Por outro lado, ninguém cobra nada de você pelo sistema operacional. O usuário deveria ser nobre e puro antes de colocar a mão num computador rodando um SO que possui essas qualidades.

Por fazer parte de uma elite, o usuário de Linux deve sempre ser tradado com gentileza e distinção. Nunca deve ser cobrado por um usuário novato em desespero por ajuda. Ele assiste se quer e quando puder. Cada um cuida de seus problemas da melhor maneira possível — e é espantoso como a elite sempre dá suporte, e mais espantosa ainda é a qualidade dele. Na média, a documentação dos softwares livres é muito superior à dos projetos privados.

Distribuições como o Ubuntu são maravilhosas. Elas demonstram como um sistema operacional aberto e baseado na boa vontade dos outros pode até mesmo querer melhorar sua interface gráfica, algo que é secundário. Mas distribuições voltadas para o “usuário final” são os Harry Poteres do mundo open source. São outdoors muito eficazes para agregar usuários, o que é importante, mas não exigem o uso da cabeça tanto quanto um Fernando Pessoa exige.

Dogma Dois: o Hardware deve ser Respeitado

O Linux permite uma customização sem limites. Usando uma distribuição de macho como Gentoo Linux, é possível compilar seu kernel para que ele fique completamente otimizado para seu hardware. Mas a customização mais eficaz é aquela que diz respeito às aplicações que você roda.

Existe um cardápio gigante nos repositórios de todas as distros. É fortemente recomendado que o usuário prove aquelas iguarias mais respeitadas, poderosas e famosas. Estou falando de aplicativos como o Vim, Emacs, Fluxbox (ou Openbox, Window Maker etc.), LaTeX, mplayer, wodim, mutt, xterm, Audacity, Blender etc.

Não existe justificativa (a não ser a diversão) para programas pesados. Essa é uma prática empresarial, para estimular a venda de programas (quanto mais pesado, parece que está melhor que a versão anterior) e de computadores. É uma ferramenta a mais que as corporações têm na manga para obter lucro. Comprar o Word seria minimamente justificável se não existisse um processador de textos chamado LaTeX, que possui uma qualidade infinitamente maior, uma organização lógica do documento, uma leveza absurda, e é completamente livre de bugs, além de respeitar os assuntos da tipologia e processar documentos com qualidade profissional.

Projetos como o OpenOffice são úteis mas não são nobres. Se você deseja tirar o máximo de seu hardware, deve procurar aplicativos leves e que, na contramão da intuição que foi enfiada na cabeça de muitos, são muito mais potentes que aquelas ferramentas pesadas que vemos por aí. Sem falar que respeitam algo muito importante, que é nosso próximo tópico.

Dogma Três: a Tradição deve ser Respeitada

Quando falamos do Microsoft Word, comentamos que ele não respeita a tipografia. A tradição da tipografia tem seiscentos anos, e o processador de textos simplesmente resolveu ignorá-la e criar péssimos hábitos na população. Vide a ABNT. Uma norma contraditória, sem motivo para existir e sem critério nenhum. Se o padrão fosse o LaTeX, ao invés do Word, seria inútil criar uma norma idiota, já que o padrão seria uma consequência natural do respeito à tradição tipográfica. Um adendo: a tradição tipográfica passou por fases, como a arte; portanto, seus conceitos são racionais e não arbitrários. Ela propõe uma organização interna lógica; e, acima de tudo, serve para emoldurar e dar o tratamento que o texto precisa. Ou você gostaria de deixar teu texto, sua criação, mal tradada, de qualquer jeito?

Mas voltando à tradição: quando a computação surgiu, a limitação de recursos era absurda. Estamos falando de kilobytes. Computação era a arte de fazer coisas belas e funcionais num espaço restrito, e isso deu origem a programas espartanos, com uma curva de aprendizado acentuada, sem qualquer eyecandy. Quando Donald Knuth inventou o TeX, fez algo maravilhoso: um sistema lógico e leve para produzir, com qualidade profissional, textos os mais variados.

Hoje os valores giram em torno dos gigabytes, o que tornou possível coisas “maravilhosas” como as touchscreens. Um sistema operacional baseado em toque seria o terror absoluto para qualquer ser pensante, mas isso é vendido como algo “du futuro”. A computação popular é a arte de enganar (e de fazer cifras enormes de dinheiro jorrar do silício).

O Linux é o melhor estandarte do software livre, que, acima de tudo, e heroicamente, leva em frente a tradição da computação. Todo usuário deveria ter conhecimento disso e deveria considerar isso um valor muito forte.

O conservadorismo que este dogma propõe não é, de maneira alguma, voltado ao passado ou luta contra o avanço da tecnologia. Pelo contrário: é um conservadorismo realista, que luta contra o desperdício de recursos e inteligência, e que tem como principal pressuposto que somos todos inteligentes e pensantes, ao invés de burros e acéfalos.

O ser humano tem a capacidade de se comunicar, e fazemos isso por meio de uma sintaxe. Nossa comunicação não é visual — e, quando se torna visual, com a escrita, é apenas uma realização da fala, que contém a mesma sintaxe mas outra forma de representar os sons. Da mesma forma, o nível mais natural de comunicar-se com um computador é conversar com ele. Assim é que se dá a programação (uma linguagem com léxico e sintaxe próprias), o uso do terminal (conversa-se usando uma série de instruções ou comandos, ou seja, verbos cujas opções seguem uma sintaxe) etc. É muito mais natural dizer ao computador shutdown -h now ou apenas halt que usar o mouse até achar um botão escrito isso.

Algumas pessoas me apontaram como um ponto negativo do terminal ter que decorar todos os comandos. Isso é mentira. Decorar palavras estimula nossa inteligência, e é algo tão comum à nossa natureza que me faltam palavras para explicar como acreditar que decorar comandos possa ser um revéz. Alguém pode contrargumentar, já que a memória visual também é um atributo natural, mas eu retruco dizendo que a linguagem possui muito mais poder que a visão. Uma pequena argumentação a favor da linguagem: é com ela que chegamos a conclusões mais complexas. Filosofia, estratégias, medicina, e me arrisco a dizer, a matemática, não existiram sem esta organização inita de pensamento que dá origem à esse fenômeno. Por linguagem, me refiro àquela escrita, falada ou por sinais (como a libras). O meio mais óbvio de se comunicar com o computador é por meio do teclado; logo a linguagem que usamos com ele é escrita.

Comandos de voz são o verdadeiro inferno astral dos programadores. Imaginar um mundo onde os computadores são completamente controlados por fala é absurdo. Imagine programar. Se você usar a sua língua materna para tanto, o código será gigante. Programas são feitos com línguas de léxico reduzido e sintaxe poderosa.

É por isso, essencialmente, que o terminal é mais poderoso e mais leve que a GUI.

Dogma Quatro: a Comunidade é Sagrada

Esse assunto deixou algumas gotas derramadas no primeiro dogma, mas a verdadeira poça está aqui. A comunidade é o único pressuposto (além de uma máquina programável) para que algo como Linux e software livre exista. Ela não deve, em circunstância nenhuma, nunca, ser atacada por palavras ruins e destruidoras, a não ser que para seu próprio bem. A comunidade é um processo orgânico que dá origem à seus próprios filhos de modo exemplar, e isso justifica a manutenção de seus valores, métodos e tradições. Se esse tripé for varrido da mente das pessoas, não há estrutura suplementar que assegure a continuidade do software livre.

Em outras palavras, se novas pessoas não se interessarem pelo movimento, e as velhas morrem, o movimento morre com elas.

Isso não significa que não existirão brigas, divergências, panelinhas e tudo o mais na comunidade. A diversidade do meio ambiente é o que garante sua sobrevivência, estejamos falando da natureza ou dos desenvolvedores livres de software. Existem os xiitas, os liberais, os de esquerda, os de direita, os divertidos, os bravos, os desligados, os vigilantes etc.

Os nerds e geeks não podem se tornar uma espécie em extinção como os dodos.

É na comunidade, nas ágoras virtuais, que a coisa realmente acontece. É graças a ela que centenas, milhares de novatos se tornampessoas melhores. Em verdade, muito além das questões de facilidade e dificuldade, muito além, reside a Verdade: é graças aos seus vizinhos e conhecidos que você aprendeu a usar o computador. Eles te ajudaram a resolver os problemas elementares que te deram o mapa pra se virar. Seja você um usuário de Linux, Windows, Mac OS, BSD, BeOS ou ábaco — agradeça às pessoas envolvidas no processo agora. Se todos os teus vizinhos usassem Linux, você seria um usuário dele. Mas o mundo não é tão perfeito assim.

Há pontos obscuros na comunidade. Por exemplo, você pode não saber, mas o comando ddate, onipresente em todas as distribuições de Linux que tive o prazer de usar, é um inútil apetrecho, um fóssil preservado do movimento discordiano. O Linux, meu irmão, serve a todo tipo de freak que você puder imaginar.

Dogma Cinco: Seriedade é Furada

No livro sagrado do discordianismo, o Principia Discordia, na Parte Cinco, intitulada “The Golden Secret”, há um texto com o título “Nonsense as salvation”, que é uma das maiores peças únicas do conhecimento humano.

Nonsense é a salvação.

Além do ddate, existem muitos outros comandos ou easter eggs que são formas dos programadores de se expressar, ou de descontrair um pouco. (Um exemplo pra quem usa Debian e derivados é o apt-get.)

Mas o mentor espiritual de todos os usuários de Linux é o Tux. Além do nome legal, este é provavelmente o único motivo pelo qual usar esse sistema operacional.



Tux, o Buda do Linux


Ao contrário da “seriedade e profissionalismo” exigido no cruel mundo das empresas de software, o software livre como um todo é livre para sorrir e ser ele mesmo. Na Wikipédia há um trecho que diz respeito ao surgimento do símbolo. Eu iria resumir aqui e escrever mais um pouco, mas acho que vocês têm a iluminação exigida para entender a profundidade disso.

Em 1996, muitos integrantes da lista de discussão “Linux-Kernel” estavam discutindo sobre a criação de um logotipo ou de um mascote que representasse o Linux. Muitas das sugestões eram paródias ao logotipo de um sistema operacional concorrente e muito conhecido. Outros eram monstros ou animais agressivos. Linus Torvalds acabou entrando nesse debate ao afirmar em uma mensagem que gostava muito de pinguins. Isso foi o suficiente para dar fim à discussão.

Depois disso, várias tentativas foram feitas numa espécie de concurso para que a imagem de um pinguim servisse aos propósitos do Linux, até que alguém sugeriu a figura de um “pinguim sustentando o mundo”. Em resposta, Linus Torvalds declarou que achava interessante que esse pinguim tivesse uma imagem simples: um pinguim “gordinho” e com expressão de satisfeito, como se tivesse acabado de comer uma porção de peixes. Torvalds também não achava atraente a idéia de algo agressivo, mas sim a idéia de um pinguim simpático, do tipo em que as crianças perguntam “mamãe, posso ter um desses também?”. Ainda, Torvalds também frisou que trabalhando dessa forma, as pessoas poderiam criar várias modificações desse pinguim. Isso realmente acontece. Quando questionado sobre o porquê de pinguins, Linus Torvalds respondeu que não havia uma razão em especial, mas os achava engraçados e até citou que foi mordido por um “pinguim assassino” na Austrália e ficou impressionado como a mordida de um animal aparentemente tão inofensivo podia ser tão dolorosa.

Dogma Seis: Iniciação

Um jovem senta-se na frente de seu computador e conecta-se à internet, buscando ajuda em sua jornada pelo mundo do software livre. Ele é novo no terminal, um andarilho por terras de línguas diferentes. Em resposta às suas perguntas incessantes, um barbudo, velho conhecido, diz-lhe que as soluções para seu problema são sudo rm -rf /.

Esses são os elementos da iniciação no software livre. Como em todo ritual de iniciação, as tarefas são árduas, e muitas vezes o neófito é aparentemente humilhado. Isso é o que chamamos de “aprender do jeito difícil”. Tenho certeza de que alguém que caiu nessa nunca mais irá usar rm sem o argumento -i.

A iniciação é um fato mais que um dogma, mas torná-la dogma garante que os infieis não destruam esse aspecto importante de nossa cultura, como eles fizeram com a deles.

Dogma Sete: duas Palavras de Fé que Todo Crente Deve Decorar

São duas filosofias (de vida, quase) que se ligam com todo o texto que escrevi até aqui, em especial o Dogma Três.
Filosofia Unix

1. Escreva programas que façam apenas uma coisa mas que façam bem feito.
2. Escreva programas que trabalhem juntos.
3. Escreva programas que manipulem streams de texto, pois esta é uma interface universal.

KISS — Keep it Simple, Stupid

É isso aê.
Conclusão das Palavras de Fé

São essas filosofias que permitem que coisas bonitas como
dmesg | grep hda | mail foo@foo.com

possam existir. São essas coisas bonitas que fazem do sistema Vim+LaTeX algo muito melhor, em termos de produtividade, qualidade, e todos os outros imagináveis, que um Word ou OpenOffice da vida.

Que você seja iluminado pelas palavras acima, e que discorde ou concorde com vivacidade.

Fonte original:
Artigo originalmente publicado por
Cabaladadá